REVANCHE NA BADWATER: 217KM DE SANGUE, SUOR E
LÁGRIMAS
Por Alexandre Castello Branco
04 de julho de 2023. Após um longo ano, lá
estava eu e minha equipe novamente no Vale da Morte, prontos para encarar os
217km da Badwater, corrida mais difícil do Mundo. Em 2022 o deserto e o calor
me venceram e tive que abandonar no km 120. Tristeza, decepção, insegurança, raiva.
Muitos sentimentos vieram à tona e me perseguiram por um bom tempo. Até que
resolvi me inscrever no processo seletivo e tentar a sorte novamente. E deu
bom, fui sorteado de novo!
Enquanto toca o hino dos Estados Unidos antes da
largada, reflito sobre tudo que passei para estar nesse momento pronto para
começar a correr. Depois de ser selecionado novamente, o que por si só já foi
uma vitória, passei meses fazendo tudo que pude para mudar o resultado final
dessa vez. Não foi fácil. Manter a disciplina, treinar duro, fazer escolhas,
tudo isso fez parte da minha rotina por pouco mais de 4 longos meses. E sim, a
insegurança e o medo de falhar novamente ainda rondavam minha cabeça.
Aliás, pausa rápida para apresentar o time, que
esteve presente durante todo o planejamento da prova e junto comigo no Vale da
Morte: Beto Noval, meu amigo/irmão desde sempre, e chefe de equipe pela segunda
vez na Badwater. Gustavo Castello Branco (Gusta), meu primo e amigo desde
sempre, que também esteve comigo ano passado e esse ano veio afiado para correr
junto comigo, e Mike Salgado, meu grande amigo/irmão que provavelmente já
encarou mais furadas esportivas ao meu lado do que qualquer um. E na “Central
de Operações” no Brasil, a Joyce, minha esposa, que me conhece mais que
qualquer um e fazia a ponte entre o que acontecia na Badwater e a massa
incrível de amigos que estavam acompanhando e torcendo daqui. Esse foi o meu
Dream Team. Eles mereceriam um capítulo à parte, mas ao longo do relato vocês
ouvirão muitas vezes os nomes deles.
Go! Começou! Larguei na primeira onda, às 20h
(haveria mais duas depois), ainda claro, num visual lindo do sol se pondo.
Dessa vez estava quente, fazendo 45 graus, mas senti que estava mais
“agradável” que o ano passado. Esse trecho inicial seria de 29km com poucas
subidas até Furnace Creek, um dos primeiros pontos de controle da prova. Em
2022, senti que parei demais junto ao carro de apoio e um dos ajustes para 2023
foi tentar ser mais eficiente nesse sentido. Correr confortável e parando menos
possível. A estratégia deu certo e cheguei no primeiro ponto de controle bem
melhor que o ano passado. Estava tão bem que cheguei nesse ponto em terceiro
lugar da minha onda, entre 38 que largaram juntos. Bom sinal! O único porém foi
o primeiro vômito da prova, quando engasguei com os chips de mandioca que tinha
separado pra comer. Faz parte. Coloca tudo pra fora e segue em frente!
A seguir viria uma reta infinita, o sol nascendo
e o início de uma subida muito longa de aproximadamente 28km. E a partir de
Stovepipe Wells (km 68), eu poderia ter um pacer ao meu lado, o que me daria um
gás a mais.
A "BARRIGA DA BESTA"
Cheguei em Stovepipe com o dia nascendo, ainda
“fresco”. Em 2022 cheguei nesse ponto com o sol machucando já! Pit stop rápido
para comer, passar protetor solar, comer um fenomenal purê de batata e seguir
em frente. A subida, que não terminava nunca e parecia sem fim, ia ficando cada
vez mais para trás e o ponto de corte mais puxado da prova se aproximava.
Chegamos com sobra e inteiros, o que elevou nosso moral! O dia estava
esquentando, mas ainda estava longe do que pegamos ano passado e não queríamos
perder muito tempo ali e “gastar nossa sorte”.
Esse próximo trecho, até Panamint Springs, seria
o mais importante para mim. Foi nesse ponto que tive que abandonar ano passado,
após pegar 60 graus no trecho conhecido como a “Barriga da Besta”. Eu e a minha
equipe passamos meses traçando a estratégia para esse ponto e pensando em como
ultrapassá-lo dessa vez, com o menor dano possível. Estávamos muito focados, ia
ser ruim nos derrubar de novo. Passamos direto, sempre com toalhas geladas
encharcadas em volta da cabeça, para minimizar o calor, que aumentava cada vez
mais. Nesse trecho o time estava entrosado demais, foi bonito de ver. Todo
mundo focado, trabalhando em conjunto para sair daquele buraco o quanto antes.
E ainda tivemos a sorte de ver dois jatos do exército passando rasante pela
gente, num barulho ensurdecedor. Irado!
Quando cheguei no ponto de controle, o mesmo que
abandonei em 2022, inteiro e ainda cheio de energia (e fome!), senti que
havíamos ultrapassado uma barreira psicológica importante demais. Parei para
comer, me hidratar e ir ao banheiro. Sim! Também vamos ao banheiro numa
ultramaratona! Ainda tomei um sorvete de chocolate fantástico, um dos melhores
que já comi na vida (pelo menos esse foi o meu sentimento na hora).
A partir de agora, tudo seria novidade para mim.
Começava uma nova Badwater para o Team Xandi.
UMA NOVA BADWATER PELA FRENTE
Depois que passamos do ponto que desisti ano
passado, era hora de encarar o desconhecido. Já havíamos passado pelo percurso
de carro, claro, mas passar correndo é outra coisa. Troquei de tênis porque já
começava a sentir um incomodo nos dedinhos, bem na lateral. Com o impacto
constante nos pés e o asfalto quente (bem quente!), os pés acabaram inchando
mais que o normal, fazendo com que o atrito com o tênis fosse cada vez maior.
Mas tudo controlado. Ou pelo menos eu achava que sim.
O próximo trecho seria mais uma
vez com uma subida super longa, sinuosa e estreita. O calor que não pegamos na
Barriga da Besta, resolveu surgir ali, maltratando o corpo. Coloquei uma camisa
de manga comprida para me proteger melhor e seguimos em frente. Além de
íngreme, as subidas eram meio “curvadas”, tipo aquelas pistas de Nascar, o que
maltratava ainda mais meus dedos. Dava vontade de correr de lado, igual siri.
No meio da subida, percebemos que o gelo não
duraria até Lone Pine, próximo local que haveria qualquer estrutura de apoio.
Ficaríamos umas 15h sem contato com nada e ninguém, e certamente ficar sem gelo
nos traria sérios problemas. Subi com o Gusta até o topo, enquanto o Beto e o
Mike desceram novamente até Panamint Springs para reabastecer os coolers. Nos
encontramos lá em cima, no canyon onde o exército treina com seus caças e a
cena era surreal. Algumas equipes estavam trancadas no carro, no
ar-condicionado, aguardando seus atletas. Outras do lado de fora tirando fotos
e uma em especial estava ALUCINADA, dançando com a música alta, como se
estivessem numa festa. Seria aquilo real ou uma alucinação?
Depois do topo, subimos mais um pouco e depois
começamos a descer. Nesse ponto, os pés já estavam doendo, as bolhas dos
dedinhos incomodando e o cansaço batendo.
E ainda faltavam mais de 70km para o fim.
CANSAÇO, BOLHAS E MAIS UMA NOITE SEM DORMIR
O cansaço havia chegado. E estávamos entrando
agora na segunda noite da prova, geralmente a mais difícil. É quando o corpo
começa a reclamar e dar sinais de que algo não está certo. “Você tá de
sacanagem que vai virar OUTRA noite correndo né?” Mas seguimos.
Nesse ponto, já estava com duas “vomitadas” de
saldo, mas super tranquilo ainda e conseguindo comer tudo menos o “kit
salgados” que havíamos preparado com tanto carinho dois dias antes. O corpo
resolveu rejeitar as comidas que eu havia comido inúmeras vezes nos treinos,
vai entender.
Antes de começar uma descida longa, pausa para
uma mini cirurgia nos pés, feita pelo mais novo especialista em bolhas, Mike
Salgado, meu pacer e agora enfermeiro também. A situação já estava começando a
ficar feia, as dores cada vez maiores e como encararíamos um trecho longo com
descidas ainda, foi preciso proteger melhor os pés.
Curativos feitos, engole a dor e segue em
frente. Descemos bem, numa velocidade boa, acima do que eu achei que
conseguiria inclusive. Mais para frente, o Gusta entrou e num período de alguns
quilômetros, entrei numa zona maluca que comecei a correr forte, como se
estivesse começando a prova naquele momento, balbuciando coisas sem sentido,
gritando, falando uma língua que certamente não existe. Quem já fez apoio para
mim em algum momento conhece bem esse momento estranho.
Depois disso chegamos na pior parte da prova para
mim. Na edição desse ano foi preciso fazer um desvio porque nevou muito no topo
das montanhas e com o calor intenso do verão, a água desceu e simplesmente
inundou um trecho inteiro da corrida. Eram 24km de uma reta infinita, de
madrugada, e por incrível que pareça, frio, cortesia dos ventos que vinham
direto das montanhas à nossa frente. Ali foi meu ponto mais baixo da prova.
Tive que cortar a lateral do tênis porque o dedinho não cabia mais. Mal
conseguia andar e precisava parar pra sentar a cada 1.6km, marcados
religiosamente pela equipe de apoio. Sabia que estava cada vez mais próximo do
fim, mas ali bateu um desânimo grande.
Sentei mais uma vez na cadeira, abaixei a
cabeça, pensativo. Mike veio e me deu um abraço. Engoli o choro, levantei e
segui. Era tudo que eu precisava naquele momento.
O fim estava próximo, mas ainda faltava a meia
maratona mais difícil do Mundo pela frente.
SUBINDO ATÉ O MONTE WHITNEY
O dia nasceu, chegamos em Lone Pine e tive
minhas energias renovadas. Vencemos a segunda madrugada! Agora só mais 21km até
o fim. Ali, mais do que em qualquer momento, sabia que terminaria a prova. Só
se minha perna caísse eu não cruzaria aquela linha de chegada. Mas ainda tinha
uma montanha para subir.
Naquele momento, olhando pro meu tempo de prova
e fazendo uns cálculos rápidos (dentro do possível, no estado em que eu me
encontrava), achei que poderia buscar um objetivo secundário ainda, que era
fechar a corrida em menos de 40 horas. Seria difícil, não poderia perder muito
tempo e teria que seguir constante até o fim, mas vai que dá né? Foi bom ter
uma motivação extra para me agarrar nessa reta final.
A subida não dava refresco, ia ficando cada vez
mais íngreme, e meus pés resolveram doer de uma forma que eu nunca tinha
sentido antes. Nem sei como estava conseguindo ficar em pé, eu chegava a gritar
de dor. Em um determinado momento, pedi para entrar no carro, que estava
estacionado no acostamento, e quando entrei, desabei no choro, do nada. Nem
precisei ver um dos vídeos com mensagens de apoio de uma galera top que minha
equipe havia preparado. Chorei de solucionar, querendo desabafar tudo que
estava sentindo no momento. Misto de alegria, cansaço extremo, dor (muita!),
tudo. Costumo ficar muito no estado bruto, à flor da pele no final dessas
provas muito longas. Foi ótimo desabafar. Minha equipe me abraçou, nos
motivamos e falamos juntos: “Vamos acabar essa merda logo!”. Que momento foda!
Amo minha equipe!
Logo em seguida, vimos uma atleta um pouco à
frente e eu e Gusta nos entreolhamos e decidimos que tiraríamos uma força do
fundo do baú para passá-la. Cada pequena motivação extra era motivo para pensar
um pouco menos nas dores absurdas que estava sentindo. Como estava muito
íngreme, passamos caminhando rápido e logo em seguida decidi começar a correr,
como se estivesse zerado, com 215km nas costas já, até dar uma “distância de
segurança” dela e parar. Se ela tinha alguma esperança em me alcançar ainda,
ela evaporou depois dessa corridinha que tirei força não sei de onde para dar. Meu
espírito competitivo não se aguentou ali! Ahahah
Nos quilômetros finais, senti que me aproximava cada vez mais, mas não chegava nunca! Cadê essa linha de chegada?? Quando finalmente vi a faixa e minha equipe de apoio me esperando para fazer juntos os 100m finais, desabei no choro de novo. Sabe aquela história de passar um filme pela cabeça? Então, ali passou, desde o ano passado, quando tive que abandonar, até todo o sacrifício que fiz para chegar até ali, naquele momento, realizando um sonho.
Cruzei a linha de chegada em outro planeta, em
êxtase, e nos demos um abraço final para fechar a incrível e louca jornada que
tivemos. E fechei sub-40h, em 39h56min. Que loucura! Achei que não poderia
ficar mais feliz que isso, mas quando peguei meu celular, depois de dois dias
sem mexer nele, e vi a animação e quantidade de mensagens LINDAS que meus
amigos e familiares estavam trocando no grupo, fiquei novamente emocionado.
Vocês são incríveis!
Preciso fazer também um agradecimento especial aos apoiadores que estiveram do meu lado e acreditaram em mim e na minha equipe. Certamente vocês têm um pedaço dessa conquista. Wollner, GU, Blu, UV Line, Pacco, YOPP, Nestravel e Café Soar, OBRIGADO. Espero que estejamos juntos em loucuras futuras. E ao meu treinador, Kiko Ottoni, que gosta de uma cilada tanto quanto eu e me deixou pronto para o deserto.
No final, o melhor disso tudo não é a corrida, os 217km (no
relógio deu 221km!) ou as montanhas que subimos e sim as pessoas que estão à
nossa volta e fazem parte da jornada contigo.
E isso, desculpe, eu tenho as melhores ao meu
lado.
Badwater, sou mais a gente! Nos vemos nunca mais! Sera?
Alexandre boa tarde, sensacional a sua superação e seu relato. Muito obrigado por compartilhar a sua experiência conosco. Parabéns!!!
ResponderExcluirEspetacular 🤩
ResponderExcluirExcelente as observações e comentários … já fico imaginando treinos e dificuldades p esta prova.
217km não é nada fácil, e nestas condições da BW é mais loucura ainda, mas quem sabe um dia 😉